quinta-feira, 5 de julho de 2012

Portas


Florence finalmente chegava a seu mais novo destino. Uma comprida, porém simples cabana de madeira. Ali dentro, disseram, ela poderia encontrar muitas verdades que procurava. Talvez, descobriria até como voltar para casa.

Contudo, havia algo de estranho naquela cabana. Duas portas, idênticas, uma ao lado da outra. Em cima das portas, entalhado na madeira, lia-se “ESCOLHA”, em letras garrafais.

Florence caminhou em direção à porta da esquerda. Contudo, hesitou ao girar a maçaneta. Como saber qual era a certa? E o que aconteceria se entrasse na porta errada? Florence estava ali tempo suficiente para saber que escolhas erradas costumavam sair caro nesse mundo. Voltou e sentou-se em frente à cabana. Apoiou a cabeça em suas mãos enquanto encarava as portas.

Não demorou muito e um saltitante coelho passou por Florence. Ele nem olhou para Florence, para a palavra ou para as portas. Abriu logo a porta da direita e pulou para dentro. Florence sorriu, aquele coelho sabia das coisas. Correu até a porta da direita e entrou.

Florence não podia acreditar em seus olhos. À sua frente, outra cabana. Ou seria a mesma? A mesma palavra entalhada de forma idêntica. Só que dessa vez, haviam três portas ao invés de duas. E o coelho havia inexplicavelmente desaparecido. Florence logo percebeu que dessa vez, ninguém apareceria desta vez para ajudar. Escolheu novamente a direita.

Florence já sabia o que iria ver. A mesma cabana, quatro portas. Iria escolher a direita toda vez. Afinal, algo semelhante funcionava com labirintos e seria fácil de voltar caso sua estratégia não funcionasse.

E assim foi. Porta após porta, Florence seguia em frente. A cada porta que abria e voltava a ver a cabana, sua confiança diminuía, embora ela não demonstrasse. Quando ela chegou a doze portas, Florence perdeu a coragem de continuar. Aquilo estava se tornando cada vez mais complicado e não havia nada ali indicando que ela estava fazendo a escolha certa. Era hora de voltar.

Florence abriu a porta por onde veio, mas não estava preparada para o que viu, embora não fosse tão surpreendente assim. A mesma cabana, treze portas. Florence sentou-se no chão e começou a chorar. Aquilo não era um labirinto e ela ficaria presa ali para sempre. 

“Não chore.” – uma voz inumana disse em meio às lágrimas de Florence. Ela olhou em volta, assustada. Não havia ninguém ali.

“Aqui embaixo.” – Florence olhou para baixo. E viu o que parecia ser sua própria sombra materializar-se em sua frente. Uma forma negra levantava-se fluidamente do chão, vazando para os lados. Quando finalmente terminou, não se parecia nada com Florence. Dois olhos amarelos brilhantes abriram-se. Apesar de ser um tanto bizarra, Florence não teve medo. Podia sentir que sua sombra queria apenas ajudar.

“Eu estou perdida aqui. Nós estamos.” – Florence agora continha suas lágrimas. “E eu não sei como sair.”

“Claro que você sabe.”

“Eu sei?” – Florence agora estava perdida.

“Sim. Se eu sei, você também sabe.” – o rosto da sombra se movia. Florence achou que era uma tentativa de sorriso.

“Se você sabe, então me fala logo! Qual é a porta?”

A sombra riu. “Qual porta? Pelo jeito, vamos ficar aqui por mais um tempo…”

Florence agora sentia-se irritada e, honestamente, um tanto quanto ofendida por sua própria sombra. “Se você vai ficar rindo aí e não vai me ajudar, por que veio?”

“Vir? Eu sempre estive aqui!”

“Claro, mas não desse… jeito.”

“Eu só tenho um jeito. Florence, pense…” - Ela bem que estava tentando, porém sem muito sucesso. A sombra aproximava-se lentamente. “Se eu tenho a resposta, você também tem. Nós somos a mesma coisa.”

Florence suspirou e olhou para baixo. Quando viu sua sombra ainda no chão, intacta, Florence entendeu o que estava acontecendo. Caminhou em direção à forma negra e a abraçou. Imediatamente, ela sentiu uma conexão que nunca havia sentido antes. Havia se conectado consigo mesma pela primeira vez em muito tempo, talvez pela primeira vez na vida.

Agora ela possuía a resposta enquanto a forma negra dissolvia-se no chão. “As portas nunca tiveram nada a ver com isso, não é mesmo? Obrigada.” – Florence sorria e, em segundos, estava sozinha novamente.

Florence andou em direção a uma porta, confiante. Não importa qual delas. Abriu a porta e entrou. Finalmente, estava dentro da cabana e desse dia em diante, entendia que não importava a circunstância, ela estaria sempre no lugar certo e na hora certa, uma vez que era ali onde ela estava agora e nada mais importava.

Florence finalmente encontrara a verdade que procurava. O que havia dentro da cabana é uma outra história.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

"Não Rolou?"

Finalmente. Hoje é o dia. Melhor dizendo, a noite. Acordei ao amanhecer sozinha, o coração já batendo mais forte. Parece piegas, mas sempre me sinto assim. Como se fosse a primeira vez.

Mas até chegar a hora tão aguardada, o dia é exatamente como qualquer outro. Só que pior; eu sei que o tempo precisa passar rápido. Infelizmente, todos temos obrigações. Não que meu dia seja ocupadíssimo, mas é difícil manter a concentração em qualquer outra coisa. Fico pensando, pensando... “e se dessa vez não rolar como da última? O que pode dar errado?”
Enfim, vocês sabem como é. Aquela típica tortura psicológica auto-infligida, que precede qualquer momento verdadeiramente significativo.

Obviamente, as horas passam arrastadas. Em qualquer outra ocasião, já seria um novo dia. Mas não hoje. Percebo que todos evitam falar comigo mais que o necessário. Sabem que meu humor não é dos melhores. Irrita-me que eles me conheçam tão bem. Dá vontade de gritar com elas por não terem me dado a oportunidade de gritar com eles. Finalmente o dia passa e eu posso sair daqui.

A próxima fase também não me agrada. Aparência é essencial. Principalmente quando dizem que não é. Por sorte, escolho minhas roupas rapidamente. Talvez rápido demais. "E se eu me esqueci de algo? As cores estão certas? O vestido não é curto demais? E aquele outro não seria longo demais?"
As perguntas se multiplicam enquanto encaro uma mulher cada vez menos confiante no espelho. Por fim, encontro a combinação perfeita.

Mas ela me custou quinze minutos de atraso. Olho ao meu redor, ninguém parece estar entediado. Ótimo. O salão como sempre está lindo. Sento-me e logo depois ele chega. Impressionante como todos aparecem com a mesma expressão no rosto. Até hoje não consigo identificar qual o sentimento que aquele semblante tão familiar esconde...
Estão todos olhando para mim. Acho que me calei por muito tempo. Chegou a hora. Meu coração quer explodir. Tento falar, mas nenhum som sai da minha boca. Na terceira tentativa minha voz consegue sair, talvez um pouco alta demais.

“Cortem-lhe a cabeça!”

Arregalo os olhos enquanto a lâmina desce. Segundos depois, todos deixam escapar um murmúrio de espanto. Quase que instantaneamente perco o controle. Está tudo arruinado.

A cabeça não rolou? Como não rolou? Construímos até uma rampa para que isso jamais acontecesse! Ela era grande demais? Pesada demais? Talvez quadrada demais. De todas as coisas que podiam dar errado... essa é a pior delas! A pior!

Estão todos estáticos, esperando o que vai acontecer. Nem eu sei ao certo. Antes que eu possa pensar, algo ainda mais inesperado tira novas interjeições de espanto da boca dos convidados. Em um ato de desespero, o carrasco acertara um chute muito do bem dado na cabeça. Ela subiu alguns metros, voou por alguns segundos e finalmente se encaçapou dentro de uma cesta de maçãs em cima da mesa do banquete.

Um silêncio mortal cortou o salão. Logo depois, veio o riso. Generalizado, incontrolável. Durou vários minutos.
Nascia assim uma nova tradição.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Boas Novas!

Qual foi a minha surpresa ao descobrir que aquele baú estava esperando por mim há duzentos anos! Como isso era ao menos possível eu jamais saberei. Mas não importa. Dentro do baú havia uma carta. A carta mais importante que eu recebi durante toda a minha vida.


Querida Florence,

Eu pressinto que um tempo ainda mais sombrio que o meu está para chegar. Por isso, escrevo-lhe esta carta. Ela contém palavras que jamais podem ser esquecidas. Eu tenho a certeza de que ela chegará até você no tempo certo.

Esse é um tempo de transição, assim como o seu. Eu vejo que nossos valores estão distorcidos. Nossa fé é cega e se concentra em ensinamentos valiosos, porém congelados no tempo; e nossas esperanças residem na certeza de que poderemos responder todas as perguntas no futuro. Infelizmente, falhamos em perceber que a chave de tudo encontra-se no agora. Anos vão se passar até que todos saibam que o certo e o errado residem dentro de nós, e que jamais seremos capazes de responder certas perguntas. Simplesmente porque não é nosso papel respondê-las.

Florence, as pessoas perderam a fé tanto umas nas outras, como nelas mesmas. Tanta coisa errada está acontecendo. Olham para dentro de si com os temores do mundo afora e tudo que conseguem enxergar é escuridão. Por isso, morrem de medo de olhar novamente. Isso é um erro. Se olhassem, saberiam que o ser humano é bom por natureza. Se alguém lhe disser o contrário, não acredite! Se algum dia você duvidar disso, feche os olhos e preste muita atenção. Você verá que eu estou certo.

Por isso, muitas pessoas acreditam que não merecem ser felizes. Dão tanta importância para as perdas que não prestam atenção nos ganhos. Lembram-se sempre de reclamar, e nunca de agradecer. Quando se sentem felizes, estão incomodadas. Involuntariamente farão de tudo até que voltem à condição anterior de miséria. Acostumaram-se ao sofrimento. Acreditam que, dessa forma, serão recompensadas no futuro por algum senso de equilíbrio no universo. Acontece que, se elas próprias não se ajudam, não há nada que o universo possa fazer a respeito. Florence, jamais desista dessas pessoas. Elas serão difíceis de convencer, mas você não pode parar de tentar. Cada um desses indivíduos possuirá um papel muito importante no futuro. Como você deve saber, tudo está conectado. Se qualquer pessoa deixar de servir seu propósito nesse mundo, essa falha será propagada e amplificada com o passar do tempo. Eventualmente, produzirá resultados diferentes do esperado. Jamais se esqueça disso: todas as pessoas são elementos-chave. Comece por aquelas que mais precisarem de você.

Finalmente, o mais importante: você não conseguirá fazer tudo sozinha. Mas isso não é motivo para desanimar! Você terá ajuda. Apenas faça a sua parte, e você verá que muitos começarão a seguir o seu exemplo. Pessoas que você jamais imaginaria serem capazes de grandes feitos serão transformadas na frente de seus olhos!

Não destrua esta carta. Caso não queira guardá-la para si, deixe-a ao vento e ela certamente encontrará alguém que precise dela tanto quanto você. Se quiser ficar com ela, não tem problema. Em muitos momentos, você vai duvidar do seu caminho. Esta carta certamente fará com que você recupere suas forças. Eu não estarei aí, por isso cabe a você espalhar as boas novas! E não se esqueça de mais uma coisa: cresça, mas jamais se esqueça da mágica que há dentro de cada um de nós. Ela é real!

Muito boa sorte Florence! Sua missão será muito mais difícil que a minha. Mas você irá conseguir. Eu posso sentir.


-B.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Gênese (Tributo)

Florence voltou para onde estava o pergaminho. Ele parecia ainda maior do que da última vez. Não se conseguia mais enxergar seu fim no horizonte. Tirou os sapatos e ficou de pé sobre ele. Havia encontrado o primeiro capítulo. Decidiu que iria lê-lo, não importando quantos quilômetros o capítulo tivesse. Para sua sorte, o primeiro capítulo era bem mais curto que o esperado.

“Milhares de anos atrás, havia sobre a terra certas criaturas. Tinham exatamente a mesma aparência que pessoas, viviam exatamente como pessoas, pensavam exatamente como pessoas. Mas não eram. Quando surgiram no mundo, eram seres mágicos capazes de fazer coisas impensáveis. Entretanto, a harmonia entre essas criaturas estava abalada e a mágica se havia se perdido há muito tempo. A grama já não era tão verde, os dias eram mais escuros, o gosto na boca tornara-se mais amargo. O mundo estava sendo consumido, e a vida parecia condenada a uma vagarosa decadência até o fim dos tempos. Mas os dias passavam sem ninguém notar.

Parecia um dia como qualquer outro. Não era. A Terra havia tentado avisá-los por anos de que algo terrível estava por vir. Contudo, ninguém entendeu os sinais. Até que, finalmente, nesse dia, tudo mudou. O tempo parou. Ninguém percebeu, pois haviam sido paralisados. Era o último esforço da Terra para conter a catástrofe iminente. Foi em vão. Quando o tempo voltou a correr, a terra tremeu. Cada vez mais forte. Todos entraram em pânico. O chão se abriu, engolindo tudo o que estava no caminho. Aqueles que estavam seguros ainda tiveram que ver uma enorme parede de água se levantar e levar o pouco que havia sobrado embora. Muitos perderam a vida. Outros sentiram que haviam perdido muito mais.

Quando a terra se acalmou no dia seguinte, os que sobreviveram encontraram um desafio ainda maior: recomeçar do zero. Não foi um processo rápido, mas no fim das contas, vários deles reencontraram-se com a harmonia que havia sido perdida há tanto tempo. Milhares agindo como um só, tendo o bem comum como principal objetivo. Estavam melhores, mais fortes. Dessa vez, vários notaram a mudança que estava para chegar.

O que ninguém sabia é que todos aqueles que haviam sido levados embora, ao mesmo tempo, acordavam em uma nova terra dentro da terra. Depararam-se com um enorme tapete florido, de tamanho imensurável.Toda a mágica do mundo de fora havia sido canalizada para o mundo de dentro. Quem estava ali logo percebeu que era capaz de fazer qualquer coisa, de ser o que quisesse.

Foi assim que tudo tal como conhecemos começou. Pouquíssimos dos habitantes de fora sabem da existência do mundo dentro da terra, e vice-versa. Quase ninguém pisou nos dois mundos na mesma vida. Mas, mesmo assim, o tempo passará para ambos, até chegar o dia de se tornarem um só novamente. E, assim como o dia em que o chão se abriu, parecerá um dia como qualquer outro. Mas não será.”

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Combustão

Alice não havia seguido o conselho. Nem o meu, nem o da lagarta. Ela não deixaria esse mundo por nada. Nem mesmo agora, enquanto calmamente observava tudo queimar. Acreditava que ainda podia salvar tudo e todos. Só não sabia como. De repente, olhou para o lado e viu uma coisa estranha. De seus ombros saíam grossos fios. Ao passar a mão atrás de sua cabeça, viu que ali também encontravam-se outros fios. Tentou se desvencilhar inutilmente. Apesar de sentir que alguns deles estavam no limite de suas extensões (enquanto outros se encontravam estranhamente frouxos), não andou além. Primeiro, tinha a certeza de que aquele fio não iria arrebentar. E, em segundo lugar, se saísse dali, jamais poderia retornar. Então resolveu seguir aqueles fios de volta para ver o que a prendia ali. Mais rápido do que ela esperava, o número de fios começou a aumentar, se ligando a praticamente todas as coisas que via. Quanto mais andava, mais fios apareciam. Finalmente, viu uma silhueta. Todos os fios vinham de suas mãos. Os olhos amarelos brilhavam e eram a única coisa nítida que se podia ver. Alice continuou a se aproximar, mas ao invés de se revelar, a silhueta continuava negra, enquanto os olhos brilhavam cada vez com mais intensidade. Parou a menos de um metro da silhueta.

“Quem é você?”

“Você realmente não sabe, Alice? Estamos juntos desde seu nascimento. Antes disso até. Estive em todos os lugares que você foi. No seu mundo e aqui também.”

Como Alice estava confusa demais para retrucar qualquer coisa, o titereiro continuou:

“Como você pode ver, tudo se liga a mim. Esses fios unem a ponta dos meus dedos a cada ser vivo nesse planeta. Saudáveis ou doentes, alegres ou tristes, para o bem ou para o mal. Quase nada escapa dos meus fios. Em alguns casos, meus laços são tênues tais como uma frágil linha de costura; às vezes são mais fortes que o aço. Sou mais antigo que todos os mundos, mais antigo que o próprio deus que os criou. Eu sou eterno. Sempre estive aqui e daqui nunca sairei. Aquele que afirma que estou morto, não sabe mais o que diz. Justamente por ter se desvencilhado de mim.”

Alice agora estava entendendo menos ainda, e resolveu continuar em silêncio. O titereiro levantou sua mão esquerda, e logo depois, a direita. Ambos os movimentos provocaram uma sensação estranha em Alice.

“Se movo minha mão esquerda, você olhará pra trás, se movo minha mão direita, acontecerá o inverso. Contudo, tanto eu como você temos igual controle sobre os laços que nos unem. Qualquer um capaz de equilibrar perfeitamente a força de todos os meus fios ganhará um presente. Entretanto, esse é um desafio que requer esforço constante. Por isso mesmo, pouquíssimos obtêm êxito. Do mesmo jeito que dou, posso tirar.”

Alice provavelmente continuou na mesma. Olhou para as linhas que uniam os dois por um tempo. Finalmente, resolveu arriscar:

“Então por que você não me deixa sair daqui?”

“Eu não estou impedindo nada. Sair daqui ou não depende exclusivamente de você, Alice.”

“Mas eu vi! O fio estava no limite. Eu sabia que eles não iriam arrebentar. Portanto, estaria presa aqui de qualquer maneira.”

“Observe agora, Alice. As linhas continuam em seu limite. E você andou dez minutos para chegar até mim. Elas não deveriam estar frouxas?”

Alice estava menos confusa, mas ainda não era capaz de entender muita coisa. O titereiro pegou um pouco de ar, e depois voltou a falar, com o intuito de concluir seu raciocínio:

“Meus fios têm o comprimento que sua força de vontade permitir. Se você pudesse apenas se livrar do peso morto que carrega... Mas você escolheu ficar. Num lugar ao qual nunca pertenceu. Observe.”

O titereiro mostrou novamente as mãos. Quando Alice percebeu que apenas as linhas da mão esquerda que os ligavam estavam tensionadas, finalmente compreendeu. Sentou-se calmamente no chão. Foi a última coisa que eu vi. Depois disso, as chamas ficaram altas demais e as silhuetas de Alice e do titereiro desapareceram.

sábado, 21 de agosto de 2010

A Árvore Falante

Essa foi a primeira conversa que tivemos; aliás, muita coisa mudou em minha vida depois do meu encontro com Alice, três dias atrás. Enxerguei no meio do bosque uma fumaça. Andei em direção a ela, que se tornava cada vez mais espessa. Até que, finalmente, perto de uma árvore que parecia centenária, lá estava ele a fumar seu cachimbo.
“Estava à sua espera, menina”, foi a primeira coisa que ele disse. Depois começou a falar ininterruptamente, sem me dar a chance de responder.


Ouça-me com atenção. Há muito tempo atrás, havia uma menina. Loira, cabelos cacheados, vivia numa casa com um belo jardim, longe da cidade. Sua melhor amiga era uma jabuticabeira. Elas passavam horas e horas e horas conversando sobre todos os assuntos. Todo ano, a árvore se enchia de flores e depois de deliciosas jabuticabas. Durante essa época, as duas eram ainda mais inseparáveis.
Um dia, a menina e a árvore conversavam, enquanto sua irmã mais velha passava ali pelo jardim. Ela caçoou da caçula por estar falando com uma planta por dias a fio. A menina, então, pensou que a irmã tinha razão e teve medo de estar enlouquecendo. Depois de alguns dias, sentou-se ao pé da jabuticabeira e começou a chorar. Ficou ali por horas. A árvore nunca havia visto a menina naquele estado e tentou conversar com ela. Mal sabia que essa seria a última conversa que teriam.

“Por que você está tão triste, menina?”
“Minha irmã me disse que árvores não falam.”
“E o que você acha disso?”
“Eu acho que ela tem razão. Pessoas normais não falam com árvores, e eu quero ser normal.”

O desejo da menina se realizou. A partir desse momento, a árvore fechou os olhos e não falou nunca mais. Nos anos seguintes, passou a dar cada vez menos flores e frutas. Até que um dia parou. Ficou doente, seca, e mal se podiam ver folhas verdes nela.
No começo a menina se sentiu mal, morria de vontade de sair no jardim e conversar com a árvore. Depois, foi esquecendo, até que isso se tornasse uma vaga memória, perdida em algum cantinho de sua mente. Conforme os anos se passaram, ela eventualmente tinha sonhos com uma árvore que falava, pedia ajuda a ela, mas nunca se lembrou do porquê. Os sonhos ficaram cada vez mais raros até que, um dia, cessaram completamente.
A última folha verde da árvore caiu no chão exatamente na mesma noite que a menina, agora uma linda mulher, teve o último sonho. A árvore havia gasto suas últimas forças, chamando sua amiga. Esforçou-se tanto que gastou inclusive as últimas energias que guardado para si. No outro dia, a mulher acordou triste sem saber a razão. Sentia que uma pequena chama dentro de si havia se apagado, para nunca mais voltar a acender. Sem jamais descobrir o motivo, sua vida normal tornou-se mais triste desse dia em diante.


Veja Florence, a vida é cheia de coisas mágicas. Tudo está ligado de uma maneira que sequer podemos imaginar. Na verdade, nascemos enxergando e entendendo todas essas coisas, e com o tempo, o véu se rompe. Passamos a ver cada vez menos, acreditar cada vez menos, até que um dia não nos resta absolutamente nada e a vida perde toda a mágica, torna-se amarga. Começamos por deixar de acreditar em árvores falantes. Depois, deixamos de acreditar em mágica. E assim se segue, com destino, Deus, amor... Mas tudo isso continua lá, apenas esperando ser redescoberto, por aqueles que acreditam e sabem onde procurar. Precisamos acreditar, em qualquer coisa, por menor que seja. Caso contrário, tornamo-nos incapazes, como árvore, de dar flores e frutos. Até que, por fim, secamos, gastando nossas últimas energias, sem jamais ter seguido em frente.

Calou-se, deu um trago em seu cachimbo e, imediatamente, foi envolvido pela fumaça. Desapareceu no meio dela, como mágica. Encontramo-nos várias vezes depois. Mas daquele dia em diante, toda vez que passava pelo bosque, parava para conversar com as árvores. Com o tempo, elas voltaram a me responder. Então surgiram as fadas, os duendes, os anjos, as ninfas... E eu nunca mais me senti sozinha.

domingo, 6 de junho de 2010

Estática

Foi numa noite estrelada que percebi. Estava encantada observando uma das inúmeras paisagens que se podia encontrar na área dos bosques. Era uma enorme planície, forrada de grama. Ao longe, apenas uma árvore, muito alta. Um tapete verde até onde a vista podia alcançar, iluminado apenas pela luz da lua. No começo, não pensei que esse dia pudesse chegar e, agora que chegou, não sei muito bem o que fazer. Deixe-me explicar o que aconteceu.

Enquanto estava deitada, comecei a repensar todo o meu passado. Tudo o que havia vivido antes de chegar aqui. Já não sabia mais se eu queria essas coisas de volta. Pensei na minha família, meus amigos. No último natal, quando eu ganhei a boneca que tanto amei, mas que já não carregava mais comigo. Lembrei-me das noites na casa das amigas, quando ficávamos acordadas conversando até tarde, escondidas, para evitar um sermão. Do dia seguinte, que mal conseguíamos ficar acordadas na escola. Da primeira vez que gostei de um menino. Das conversas de corredor com minha irmã. Da última vez que vi o rosto da minha mãe... memórias especiais, com certeza.

Talvez vocês me tomem como louca, mas já não sabia mais se queria voltar pra tudo aquilo; não sabia ao certo se queria vê-los novamente. Na verdade, não sabia mais se queria ver qualquer pessoa, mesmo as daqui. Senti que não fazia questão de mais nada, enquanto eu tivesse aquela paisagem para observar. Poderia ficar ali para sempre, se quisesse. De fato, permaneci naquele campo por mais três dias, completamente sozinha. Pela primeira vez, não gastei todas as minhas forças em procurar uma saída. Não passei horas treinando minha mente, com medo de perder a noção de quanto tempo estava aqui. Pela primeira vez, não senti aquela necessidade patológica de querer algo que não se tem. Não precisava, não queria nada, não queria ninguém. Nunca estive tão tranqüila antes. Mesmo enquanto estava perto da minha família e meus amigos, jamais me senti tão... feliz?

Se era felicidade, ou se eu estava apenas me enganando, eu não sei. Talvez eu tenha conseguido encontrar a paz que muitos passam a vida inteira procurando; talvez minhas opções tenham finalmente se esgotado. E, sinceramente, se é uma coisa ou outra, no momento não me interessa saber.




Tudo estava tão distante como um sonho, e talvez devesse continuar assim. Dessa forma, essas memórias permaneceriam especiais para sempre.